quarta-feira, maio 26, 2004

O Suave Milagre 48 - erosão

tu és a rocha alta à beira-mar
rocha escarpada, sólida, inabalável
tu és o penedo firme que aponta para o céu
massa robusta, compacta, uniforme
tu és a força num bloco de matéria
cujas partículas não se movimentam livremente
eu sou a simples corrente de ar
aragem desejada, branda e fresca
eu sou o imprevisível vendaval
vento inconstante, forte e tempestuoso
eu sou o sopro quente do estio
ar denso, pesado e sufocante
eu sou o fluido gasoso transparente e invisível
que te arranca pequenos pedaços e depois espalha-os
libertando-te, mudando a tua forma muito lentamente
terás em ti para sempre
as marcas da minha erosão.

terça-feira, maio 25, 2004

O Suave Milagre 47 - monday morning

ontem de manhã, ainda sem controlar a minha débil coordenação motora, cheguei à paragem do autocarro graças à interiorização do trajecto, feito que consigo através de uma técnica de rotina avançada
sentei-me no banco frio, esperando que o choque térmico acordasse definitivamente os meus sentidos
depois enfiei o braço todo dentro da mala (quase até as axilas) tacteando lentamente à procura de "não-me-lembro-o-que", com esse gesto tão feminino de encontrar coisas que estão na mala sem olhar para dentro dela...
enquanto apurava o meu tacto, procurando o objecto-mistério, comecei a admirar a fauna à minha volta: um adolescente que abusa do gel e uma anciã que abusa da laca, graças a eles o meu olfacto despertou totalmente
uma vez esgotada a fauna, passei à flora envolvente e aí sim, aguardava-me uma surpresa...
à minha esquerda numa árvore esguia e alta estava uma folha A4 pregada com pionés, onde escrita a computador, podia ler-se a seguinte mensagem:
"A. Perdoa-me. Por favor volta para me."
deixei o braço descançar inerte dentro da mala e dediquei-me à divagação
- tem um erro, deve ser estrangeiro...
- foi um homem, de certeza....e porque não uma mulher? não parece...foi um homem... arrependimentos públicos, declarações públicas.... sim, foi um homem...
- é bem capaz de estar aqui perto, escondido para a ver a reacção dela quando ler...pode estar dentro de um carro estacionado...
- pelo menos ele separou os dois pedidos, uma coisa é ela perdoar outra coisa é voltar para ele...
fui interrompida bruscamente pelo autocarro, entrei e não pensei mais nisto o resto do dia mas à noitinha quando estava a chegar a casa fui espreitar a árvore e o bilhete já não estava lá...terminei a Segunda-feira tal como comecei: divagando...

sexta-feira, maio 21, 2004

Singularidades de uma rapariga loura 46 - to blog or not to blog?

cheguei a pensar que o fenómeno dos blogs era geracional, investiguei e percebi que não é, mas às vezes ainda me parece que sim
desconheço a idade da maioria dos autores dos blogs que eu leio mas reconheço em alguns desses autores uma frequência comum, a partilha de uma mesma mensagem: "escrevo por profundamente querer falar"
a verdade de Clarice Lispector aparenta ser a verdade de uma geração de bloggers e hoje há mais uma de nós a querer falar
a minha amiga finalmente começou o seu blog
chamado Os Trintões e está aqui
eu e ela somos da safra de 72, o mesmo ano do Watergate
trintonas, portanto...
coincidência ou não, o nome do blog fez-me lembrar uma série de TV
que eu devorava avidamente por me sentir identificada com as personagens
na altura, eu era apenas uma vintager com um visão romântica dos trinta
agora sou eu a trintona e estou muito bem acompanhada neste episódio
pela minha amiga cósmica, gomo da mesma laranja espiritual
a minha amiga é aquela que faz o melhor gin tónico do mundo
e conhece todas as marcas de água tónica que existem
de todas nós, é a mais feminina, a mais sensual
quando nos toca é como se as suas mãos
fossem feitas de pó-de-talco, leves e suaves
é a nossa imprescindível consultora de decoração e de moda:
- "quando é que deixas esse estilo de betinha da montanha?"
é a especialista em cosmética e a defensora obstinada dos pequenos gestos:
- "nem penses que vais dormir sem te desmaquilhar!"
e foi a companheira de uma noite mágica, que começou assim:
"que se lixe, vamos na mesma ver o Peter Murphy"
escreve Tinó, que eu estarei a sempre a ouvir-te...

quarta-feira, maio 19, 2004

Singularidades de uma rapariga loura 45 - Ripley

no fim de mais um dia de trabalho
estava tudo muito sossegado, a casa estava silenciosa
e o calor da noite entrava pelas janelas
algo me dizia que aquela calma seria interrompida brevemente...
enquanto fumava um cigarro
lembrei-me que estas noites quentes
são propícias aos ataques perversos
daquelas criaturas voadoras e pavorosas
o gato deu o primeiro alerta com um miado diferente do habitual
ele miava meio nervoso, meio ansioso
levantei-me e comecei por encontrar alguns objectos espalhados no chão
o meu coração bateu mais acelerado
dei com o gato empoleirado no local mais alto da casa de banho
encurralando a temível criatura
era negra e asquerosa tal como tinha pressentido
a invasora estava colada à lâmpada de onde saia de vez em quando
para voar em círculos pelo tecto, desafiando-nos claramente
olhei para o gato em silêncio e com gestos lentos
alcancei a arma que estava caída aos meus pés
uma arma rudimentar, é certo, mas que já me salvou várias vezes
fechei a porta atrás de mim e sozinha, enfrentei o monstro
dei-lhe com a vassoura esbracejando freneticamente até não ter mais forças
a criatura, essa continuava agarrada à lâmpada
a descansar dos voos rasantes à minha cabeça
ataquei-a novamente, várias vezes consecutivas
umas vezes de olhos abertos, outras vezes de olhos fechados
estava exausta, corri para fora da casa de banho
e encostei-me a uma esquina do corredor
enquanto esperava que as pernas parassem de tremer
e que a respiração voltasse ao normal
preparei um novo ataque, felizmente não fui seguida
e pude ir buscar uma arma mais potente que estava ali perto
com a lata de spray em punho
entrei de rompante e ataquei-a impiedosamente
sentia-me confiante, ia sobreviver
o derradeiro golpe foi rápido: disparei de olhos fechados
e mantive o jacto na mesma direcção por uns valentes 30 segundos
quando finalmente abri os olhos
vi o cadáver da criatura inerte no chão
respirei de alívio, encostei-me à parede e deslizei até ao chão
enquanto passava o genérico.

segunda-feira, maio 17, 2004

O Suave Milagre 46 - e agora?

este fim-de-semana ensinou-me
que tenho que passar a ter mais cuidado
com aquilo que eu digo querer
pois Alguém pode estar a ouvir
e pode dar-me exactamente o que pedi
logo na Segunda-feira seguinte
a minha aparente convicção foi substituida
por dúvidas sem fundamento
e objecções inventadas à pressa
para corroer rapidamente uma realidade
que se apresenta agora diante de mim
exactamente como pedi, tal e qual como a descrevi
detesto este ânimo traiçoeiro que me faz hesitar
que me deixa inerte com o passo suspenso
cada vez que o "presente" alcança o "futuro"
enquanto esta oportunidade estava na esfera
do "seria tão bom se acontecesse"
era seguro sonhar com ela
enquanto esta realidade era um desejo
cuja concretização não dependia só de mim
podia desejá-lo com toda a intensidade
enquanto o "se" era só a manifestação de uma vontade
estava determinada e segura do que queria
agora que a porta está escancarada à minha frente
não consigo atravessá-la
tenho as pernas paralisadas de cobardia
tudo isto assemelha-se a um difícil teste
e agora? ainda quero?

quarta-feira, maio 12, 2004

O Suave Milagre 45 - lista de compras

Olá bom dia, como está o Sr.?
Vamos ver se não me esqueço de nada:
- 2 kg de força, bem pesados
- 3 frascos de perdão, daqueles grandes
- 1 kit-realidade, desses novos para manter os pés no chão
- 2 paletes de paciência
- 4 embalagens familiares de saber-esperar
- 2 litros de tolerância concentrada
- 3 sacos de confiança nas pessoas
- 1 garrafa de anti-julgar os outros
- 4 molhinhos de humildade
- equilibrio e harmonia, só se estiverem frescos
- 1 repelente de medos
Desculpe, tem algum específico para o medo da solidão?
Ai sim? Então levo dois.
Quase ia esquecendo de levar coragem, ainda tenho mas é melhor reforçar o stock
Esperança e fé ainda tenho, obrigada.
Ora bem, já está tudo...
Quanto é?

segunda-feira, maio 10, 2004

O Suave Milagre 44 - dia de ser invisível

"A veces me elevo, doy mil volteretas
A veces me encierro trás puertas abiertas
A veces te cuento porque este silencio
Y es que a veces soy tuyo y a veces del viento

A veces de un hilo y a veces de un ciento
Y hay veces mi vida, te juro que pienso
Porque es tan dificil sentir como siento?
Sentir como siento que sea dificil

A veces te miro y a veces me dejas
Me prestas tus alas, revisas tus huellas
A veces por todo aunque nunca me falles
A veces soy tuyo y a veces de nadie

A veces te juro de veras que siento
No darte la vida entera, darte solo esos momentos
Porque es tan dificil? vivir solo es eso
Vivir solo es eso, porque es tan dificil?

Cuando nadie me ve
Puedo ser o no ser
Cuando nadie me ve
Pongo el mundo al reves
Cuando nadie me ve
No me limita la piel

Cuando nadie me ve
Puedo ser o no ser
Cuando nadie me ve...

Te escribo desde los dentros
De mi propria existencia
Donde nacen las ansias, la infinita esencia
Hay cosas muy tuyas que yo no comprendo
Y hay cosas tan mias pero es que yo no las veo

Supongo que pienso que yo no las tengo
Vertiendo mi vida se enciende los versos
Que a oscuras te puedo lo siento no cierto
No enciendas las luces que tengo desnudos
El alma y el cuerpo

Cuando nadie me ve
Puedo ser o no ser
Cuando nadie me ve
Pongo el mundo al reves
Cuando nadie me ve
No me limita la piel

Cuando nadie me ve
Puedo ser o no ser
Cuando nadie me ve
No me limita la piel..."

Cuando Nadie Me Ve - Alejandro Sanz

quinta-feira, maio 06, 2004

O Suave Milagre 43 - elogios

ele já nasceu com personalidade
e desde cedo deu sinais do que iria ser
durante o primeiro ano quase não se via
passava despercebido, fino e frágil
com o passar do tempo foi adquirindo forma e cor
a sua forma e a sua cor, tão características
começou a impor a sua presença, determinado
não se mostrando fácil de moldar
e raramente cedendo a pressões
cresceu livremente até que resolveram
condicionar-lhe essa liberdade
e a partir daqui teve que ser forte e resistente
perante as agressões que lhe eram infringidas
seguro de si e da sua essência
frustrou os esforços de transformação
e as tentativas de fazer dele algo que não é:
uma cópia débil e efémera de outros quaisquer
as suas raízes fortes e seguras
mostram a quem quiser ver
qual é a sua verdadeira natureza
e provam que quanto mais o agridem
mais forte fica e mais depressa se renova
desde que me lembro que oiço dizer
que o meu cabelo é bonito
o que me espanta é ter levado 32 anos
a acreditar nisso e a finalmente gostar dele.

quarta-feira, maio 05, 2004

Singularidades de uma rapariga loura 44 - Me and Mr. Otis

Sr. Otis, ontem foi a terceira vez que fiquei presa
num dos seus elevadores high-tech
ainda por cima sozinha, nem sequer um livro
ou uma revista para fazer companhia
afinal de contas 20 minutos é muito tempo
como não podia ler enquanto esperava a cavalaria
entreti-me a ver passar o filme da minha vida
com a Meg Ryan no papel principal
e uma banda sonora fantástica
mas acabava sempre distraída com o seu nome
que estava em todo o lado:
no quadro eléctrico
na plaquinha com os telefones
na alcatifa cinzenta
gravado na porta metálica
Sr. Otis, afinal o que é que se passa?
de vez em quando lá estou eu fechada outra vez
saiba que atribuo exclusivamente a si as culpas
por ter saido de lá a correr estremunhada
e ter decidido usar as escadas de serviço
e ter disparado um alarme ensurdecedor
e o mais histérico de sempre
ao carregar num botão dentro de uma
caixinha verde que dizia assim:
"para abrir a porta de emergência carregue aqui"
foi só depois de conseguir ouvir novamente
que levei com o ralhete do segurança:
- então, menina? porque é que não usou o elevador?

segunda-feira, maio 03, 2004

O Suave Milagre 42 - chamada de Domingo feita na Segunda

- oi, liguei para te dar um beijinho do dia da mãe atrasado
- obrigada minha filha...
- sabes mãe, tive três convites para passar o Domingo acompanhada mas preferi ficar em casa sozinha, olhando as nossas fotos, ouvindo as nossas músicas, fazendo aquelas coisas que nós gostamos tanto de fazer juntas, até das tuas plantas eu tratei
- obrigada minha filha...
- não me deu para chorar nem sequer uma vez, fiquei só com vontade que chegue logo o momento do reencontro com a certeza que esse momento existe no nosso futuro, e então rezei por nós as duas
- obrigada minha filha...
- e como foi o seu Domingo?
- foi muito bom, porque me senti sempre acompanhada... obrigada minha filha...