O Suave Milagre 115 - Passageiro frequente
que o rumo a seguir
levava pra longe
senti que este chão
já não tinha espaço
pra tudo o que foge
não sei o motivo pra ir
só sei que não posso ficar
não sei o que vem a seguir
mas quero procurar"
Por razões que não interessam agora, desde cedo aprendi que não devem "pesar" nas relações os kms que separam as pessoas e que não é verdadeiramente a distância que as separa. Podemos achar que sim e imputar-lhe as culpas, mas não é ela que separa as pessoas, são outras coisas, que também não interessam agora.
Comecei por fazer mais de 5.000 kms para estar com a minha mãe na Páscoa, no Natal ou nas férias de Verão. Depois, encontrava-me com a minha avó, tios e primo do lado materno e então o percurso descia para metade: eram 2.500 kms feitos no sentido oposto. Ia acumulando milhas e milhas em cada uma das férias escolares. A parte boa é que comecei muito cedo a viajar de avião sozinha (sem a mínima oportunidade de ter medo), a frequentar aeroportos, a fazer check-ins e escalas, ainda que tudo isto entregue aos cuidados profissionais do pessoal de bordo e com os documentos e a passagem pendurados num saquinho ao pescoço. Aprendi a confiar em estranhos, a dar-lhes a mão e a não ter medo de estar longe dos pais, acreditando neles quando me diziam que do outro lado haveria uma cara familiar à minha espera. Aprendi também que quando se quer chorar vai-se à casa de banho, como qualquer outra necessidade física.
Passaram-se os anos e por minha vontade, minha tão grande vontade, aumentei os kms que me separavam do colo do pai e da sabedoria da mãe F. Foi à custa dessa separação que aprendi que não se fala de saudade, aceita-se a sua presença, arranjamos-lhe espaço, deixamos que se acomode mas não falamos nela, não lhe damos importância, em nenhuma das cartas, em nenhum dos telefonemas. Aprendi ainda que não faz mal voltar atrás no caminho.
Na altura da faculdade, por causa da minha média de acesso fui estudar para fora de Lisboa e o que na altura me pareceu tremendamente injusto hoje reconheço como um desígnio divino. Nesses anos estabeleceu-se uma rotina de viagem: de quinze em quinze dias comprava-se o bilhete, fazia-se o saco, arranjava-se o farnel e faziam-se quase 300 kms para Sul. Uns dias depois faziam-se os mesmos kms para Norte. Ao longo dessas viagens fui "passando" e "chumbando", vi começar e terminar romances, ouvi e fiz confidências a companheiros de viagem, esperei e fui esperada. Aqui, aprendi a relativizar as coisas e aprendi que por mais intensa que seja a emoção ela eventualmente começará a diminuir. Aprendi que tudo passa, às vezes no tempo que demora uma viagem até Lisboa.
Depois, quando já estava a trabalhar e achava que vestia o amor no número certo, que ele me assentava como uma luva sem ginásticas nem esforços, por razões que mais uma vez não interessam voltei ao esquema "bilhete-saco-farnel". De quinze em quinze dias faço cerca de 400 Kms na ida e mais 400 no regresso, e pelo meio vou mantendo vivo algo que quero infinito enquanto dure, como dizia o poeta. São em média 1.600 kms por mês, dos quais parece-me que ainda não retirei a lição principal. O que devo aprender agora para poder parar, ou simplesmente para passar ao percurso seguinte?
Aguardo o dia em que este ciclo se fecha e que dou lugar a outro na estrada.
Até lá, sobra-me todo o tempo das viagens para ler, para pensar na vida (na minha e na dos outros), para fazer planos, para desempoeirar lembranças e até para escrever posts como este.
Até lá, continuo à espera de chegar ao destino.
"e hoje deixei
de tentar erguer
os planos de sempre
aqueles que são
pra outro amanhã
que há-de ser diferente
não quero levar o que dei
talvez nem sequer o que é meu
é que hoje parece bastar
um pouco de céu."
Um pouco de céu - Mafalda Veiga